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O CARRINHO DE PÃO!
O CARRINHO DE PÃO!

 

 

Minha vida não estava fácil. Distribui os currículos de Professor de Educação Física em vários locais e deveria ir, conforme dizia, para casa esperar a ligação. Em 1975 ter telefone fixo em casa era para poucos. Eu não tinha. Assim, deixava o número de um orelhão que ficava na porta do Bar do Seu Zé, a duas casas do pequeno quarto que alugava na casa de um parente. Enquanto isso, vivia de bicos. Desde fazer pequenas entregas a vizinhos ou vigiar carros no dia de jogo de futebol. Também dava aulas esporádicas substituindo colegas e arbitrando, aqui e acolá, algumas competições esportivas. Dessa forma sempre tinha algum, mas nunca sobrava mais do que para o aluguel, comida e transporte. Estava na famosa ¨pindaíba¨. Corria sempre, e muito, mas não saía para lugar algum.

Ademais, como ficar esperando ligações sendo que devia estar sempre em movimento. Havia uma pessoa no Bar do Seu Zé que anotava os recados e os vendia por $0,10 centavos – um bom dinheirinho só para anotar e nos entregar, mas era o que dava para ser feito.

Certo dia, enquanto saía apressado para substituir um amigo em um Colégio Municipal próximo e antes de subir na Monark, um velhinho muito simpático me abordou sorridente:

  • Quer pão amigo?

 

Muito limpo e distinto, me ofertava generosamente o produto, que deveria ser fruto de muito trabalho. Seu carrinho, de um metal prateado, parecia ser de muita leveza. Chamou-me a atenção as rodas que não eram comuns. Ao invés de aros, pareciam ser feitas de um plástico muito leve com uma borracha azulada. Havia uma estufa trazendo pães de diversos tipos, muito bonitos e com a aparência de fresquinhos. Sendo o mais educado possível, enquanto ajeitava minha mochila e capacete, disse-lhe cordial:

- Meu velho, querer eu quero, pagar não posso!

Sorridente, retrucou:

- Então, você é o meu tipo preferido de cliente. Escolha um pão, qualquer um e não precisará pagar apenas peço que o partilhe com alguém, mesmo que seja um pássaro ou um peixe no lago. Essa é única condição.

- Sério isso? – De fato, minha barriga roncava, pois para economizar, saltava o café da manhã e partia logo para um PF no almoço.

- Sim. Escolha!

Incrédulo, vi que possuía muitos e de vários tamanhos. Minha tentação procurava um dos grandes, mas fiquei com pena do velhinho. Sua generosidade não cabia em mim.

- Senhor, eu não quero explorá-lo! Sinto que não é justo ou certo!

- Vejo que é um bom homem. Mora mesmo aqui?

- Sim, aos fundos...

- Então, já que é um rapaz modesto, e pelo que vejo trabalhador, vou te dar um deles. Apenas pense no sabor e sinta como se estivesse plenamente satisfeito...

Apesar da pressa, o homem tinha uma voz mansa, transcendente, como se me acalmasse e transportasse  para um estado de felicidade, de alegria, que há muito não sentia. Ouvi-lo era como estar em baixo de uma chuva celestial de bênçãos infinitas. Para minha surpresa, tirou um pão enorme, com suas mãos muito limpas, segurando em um pegador de alumínio e o embalando com aquele papel rosado de um rolo, bem típico da época. Fiquei nitidamente envergonhado quando me estendeu o pacote sorridente.

- Divida-o com seus alunos... – Disse ao me entregar.

- Como sabe?

- Ora! Você está com a camiseta da faculdade de educação física... Logo, deduzi que tem alunos!

Sorri. Ajeitei o pacote tirando a mochila. Era pesado. Um tipo do pão de cerveja, que minha mãe fazia.

- Parece o da minha mãe! – Disse em voz alta.

- Sim. A máquina trás o que pedimos!

- Como? Agora fiquei interessado!

- Sim. Esse carrinho, de fato, é uma máquina que fabrica os pães dos quais precisamos.

- Como assim, moço?

- Simples. A pessoa pensa em um pão e ele estará aqui. Você não pensou?

Comecei a sorrir por dentro e a duvidar da lucidez do velhinho. Era muito bom, mas maluquinho.

- Meu caro, eu gostaria muito de pagar. Se passar por mim de novo, farei questão.

- Vá, jovem professor e divida o pão. Quanto mais dividir, mais o universo te trará de volta...

- Olha, muito obrigado. De coração, mesmo, viu? Somente acho que o Senhor irá quebrar se der pão para todos... Mas nunca esquecerei do que fez.

- Conto com isso! – E sorriu partindo.

Caí em mim e acelerei para a escola. O sol da região central era terrível. Daria 4 aulas durante o dia cuidando para que a meninada se divertisse, mas também aprendesse. No intervalo, havia uma merenda que fiz questão de ¨filar¨. Era o meu café da manhã e, para muitos dos garotos, seria a única do dia. Sem querer, caminhava para uma situação similar. A sopinha era rala, mas com legumes e macarrão tendo um tipo de carne que a gente lutava para identificar a origem. Nisso, lembrei do pão na mochila. Sentado na ponta de uma mesa, entre alguns alunos no galpão do pátio, sem paredes, peguei um naco grande e dei para os três alunos perto de mim um pedaço igual. Sorriram. Logo, pequenas mãozinhas se estenderam na mesa. Ia tirando os pedaços e pedindo para que fossem passando. Os meninos dali eram muito disciplinados, mas famintos tanto ou mais que eu. Então, tirava os pedaços e distribuía. Iam passando e passando. Notei que iam de uma mesa a outra. Então, percebi que na metade do pão, por mais que tirasse os pedaços, ele como que se ¨refazia¨. Fui tirando e já haviam meninos repetindo dois ou três pedaços. Um certo alarido se espalhou e animou o lanche. Por mais pedaços que tirasse, mais pão tinha. Se aquilo não era um milagre seria uma tecnologia acima da minha capacidade de compreensão. A hora do lanche terminou e, quando verifiquei o pão havia apenas a marca da retirada de um naco. Justo daquele que eu comi.

Terminei as aulas. Fiquei feliz, pois, antes de sair, fui chamado à diretoria. A diretora, uma senhora simpática, afro descendente, com largo sorriso, na casa dos 55 anos, disse que o governo autorizara, em caráter excepcional, a contratação de professores por 2 anos e me pergunto, devido aos meus bons antecedentes, se poderia trabalhar na escola. Sabendo ela da minha necessidade, falou dos benefícios e de que havia um aposento na escola. Um quarto amplo com cozinha e banheiro que poderia usar, o que me economizaria o aluguel. Não me coube em felicidade.

Em uma semana já saíra da minha condição e passava a outra melhor.

Nisso, tirava um pedaço do pão, que de modo algum ficava velho. Distribuía, sempre, com as crianças duas vezes ao dia, em cada merenda, e sempre tinha mais e mais.

Curioso, passei a andar pelas ruas à noite ou de dia, nos horários de folga do trabalho, tanto para distribuir o pão, quanto para tentar localizar o velhinho. Encontrá-lo passou a ser a minha obsessão. Como justificar aquela dádiva? Por mais que partilhasse, o pão não acabava. Minha vida só melhorou. Além do trabalho, passei a receber convites para trabalhar em competições, como árbitro de atletismo, natação ou tênis. Por vezes havia mais de uma e podia escolher a melhor. Um organizador de eventos, vendo minha disposição, fez uma proposta de parceria. Eu o ajudaria a organizar eventos e ganharia uma comissão. Infelizmente, me obrigaria a sair da escola, mas poderia ganhar, além de um fixo que daria o meu salário atual, até umas 15 ou 20 vezes mais. Iria com ele e sua equipe por todo o país. Organiza, não só eventos esportivos, mas shows de bandas, torneios em parque agropecuários e até de automobilismo. Seria ¨full time¨.

De qualquer forma, seja nos intervalos de que dispunha dava um jeito de carregar por perto o ¨pão¨ e nunca parava de distribuir por necessitados. Sabendo, no íntimo, que minha ¨boa sorte¨ poderia estar ligada ao mesmo, fui crescendo naquela profissão, aprendendo sempre e ganhei a confiança integral do amigo empresário. Em pouco, conheci uma boa moça e nos casamos.

Dez anos depois era um homem rico. Começamos um negócio de Academias de Ginástica. Em pouco tínhamos uma rede e nunca, nem por um dia, deixava eu de sair com meu ¨pão¨ distribuindo-o. Mantinha-o sempre por perto e trancava-o em um cofre. Nunca contei para ninguém, nem para a minha esposa, mas como confiava em mim, via minhas saídas como algo justo e bom, que a alegrava, pois apenas dizia que comprava pão para os pobres e que desde que comecei com ¨aquela mania¨ não parei de crescer.

Tendo que mudar de cidade e viver viajando, nunca mais vi o velhinho e creio que, por onde você esteja, se algum dia, se sentir faminto e ele passar por você com seu carrinho prateado lhe oferecendo um... Aceite!

 

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