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À Beira do Abismo
À Beira do Abismo

À Beira do Abismo

 

cão da neve


    Éramos todos homens da neve e do gelo. Nossos cães, atados a seus trenós, latiam bastante antes da veloz corrida que nos esperava. Não tínhamos muito tempo. Urgia que partíssemos e que chegássemos ao destino antes de anoitecer. A regra determinava: um cão para cada homem e um homem para cada cão. Meu animal chama-se Kevin e era o único a não latir.
    Olhei fundo nos seus olhos segurando-o pelo queixo:
    - O que há amigão?
    Ele era o mais bravo e destemido, mas não parecia pronto. Os outros me invejavam pela força de Kevin.
    - Você não vai ganhar dessa vez. Não é Millton? - Olhei para trás já sabendo quem era. Um tipo corpulento e irritante, Darlon, tendo vários dentes faltando e um hálito de foca me encarava sorrindo.
    - Não está muito cedo para dizer, Dalton?
    Ele continuou andando de costas enquanto me encarava abrindo os braços:
    - Nunca se sabe... Nunca se sabe. Te vejo atrás. (Era um modo de me provocar particularmente).
    Voltei-me para meu amigo Kevin:
    - Não se preocupe. Ele nunca está certo.
    Em poucos minutos nos alinhamos no ponto de partida. A distância seria entre duas vilas próximas: Augusta e Port Antum separadas por 18 km. O vencedor sempre recebia uma grande glória de todos e o trecho alternava acidentes, com porções de alta velocidade terminando em Port Antum sobre um grande lago congelado que nos permitia chegar muito rapidamente nos últimos 4km tornando a corrida emocionante.
    Os cães a postos e Kevin, literalmente, parado. Ao invés de se levantar, como os demais, deitou-se olhando firmemente para o horizonte como se visse algo que desconhecíamos. A corrida iniciou-se com um tiro. Estava a postos, gritando com Kevin que, sem que esperasse, disparou de modo surpreendente. Era como se estivesse concentrado, guardando forças.
    Como de hábito saltou á frente dos demais e suas poderosas patas eram como um vigoroso metal cravando naquele início de chão denso da vila de Augusta antes de começarmos o irritante trecho sobre a neve fofa. Kevin começara bem, como sempre, apesar do seu comportamento, no mínimo, estranho.
    - Isso Kevin, vamos. – Dava-lhe ordens não sabendo se seria necessário. Distanciávamos-nos dos demais a um ritmo intenso e puxei um pouco as rédeas de modo a fazer com que reduzisse a velocidade temendo o pior que se avinhava. Meu puxão, forte demais, fez com que, sem que percebesse, uma das tiras ficasse perigosamente bamba. Estávamos perto do trecho do perigoso desfiladeiro de Hamilton quando, em uma curva fechada antes do penhasco, as tiras que ligavam Kevin ao trenó se romperam. Devia ter verificado se estavam novas, mas minha falta de dinheiro proibia uma troca. Pagava o preço da insegurança. Sem muito a fazer, meu corpo e o trenó foram projetados para a frente. Comecei a rolar em direção ao abismo prevendo o pior. Tentava agarrar-me a algo, mas a velocidade e a proximidade do abismo não me permitiram e, quando achei que poderia me safar agarrando em uma pedra, vi apenas a imensa brancura das névoas que abraçavam a neblina e senti que meu corpo se acelerava brutalmente em direção ao fundo do abismo.

 

queda


    Dentro da queda, tive tempo de olhar para cima e vi a cabeça de Kevin latindo da beirada do abismo desesperado. De súbito, senti-me agarrado, pelas costas, por uma força tremenda. Seria o impacto da queda a me fazer perder os sentidos? Quando percebi, estava flutuando sobre o abismo sendo puxado por algo que não podia ainda ver. Era o delírio da morte? Aquela enorme força alçou-me até a posição onde Kevin se encontrava e deixou-me junto ao cão que se afastava latindo muito. Não podia crer no que acontecia. Voltando-me, vi um poderoso cão alado, completamente branco, com asas monumentais agitando-se sobre aquele grande vazio que por um triz não fora o meu túmulo. Seus olhos, de um azul celeste, reluziam como dotados de uma luz própria. Em seguida, ante a aproximação dos demais, alçou vôo para o espaço longínquo. Ajoelhado e abraçado a Kevin, víamos a magistral figura distanciar-se. O próximo a chegar à curva foi Dalton. Parou o trenó irritado, enquanto gritava:
    - Que desgraça, Milton! – Nossa lei obrigava o primeiro competidor a encontrar alguém ferido, ou que perdesse o trenó, a dar-lhe o apoio necessário sacrificando-se na corrida. Mesmo um sujeito irritante como Dalton não violaria aquelas regras sagradas. Os demais ainda paravam, mas o próprio Dalton sinalizava para que seguissem:
    - Sigam livres! – Era a senha para nos deixarem. Atamos os dois cães ao trenó e seguimos juntos ficando eu na parte de trás. Íamos com calma, não havia mais necessidade de pressa. Em um determinado trecho, já sobre o lago de Port Antum, ele se virou e disse:
    - Não falei que te veria atrás?
    Rimos bastante. Nunca mais vi a figura daquele cão que me salvara, mas os anjos, segundo contam, podem assumir muitas formas, bem como os demônios, dependendo do Deus que você serve...

 

(Um Conto de Jurandir Araguaia)

(Reprodução permitida desde que não haja finalidade comercial e com créditos ao autor)


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